Uma segunda-feira qualquer, consegui um tempo livre em meio à correria da louca rotina. Um tempo para fazer algo sem pressa. Curtir alguns instantes devagar.
Caminhar pelo centro de Goiânia é uma coisa que me dá muito prazer. Gosto de percorrer as ruas e avenidas, com meus passos ora firmes e com objetivo bem definido, ora perdidos e meio trôpegos. De toda forma, caminhar em meio ao maior acervo de Art decó do Brasil me faz relaxar. Mesmo com as feias fachadas das lojas escondendo a beleza da arquitetura original da Capital, ainda assim fico imaginando o que há por trás do visual pseudo moderno.
Mas nessa segunda-feira escolhi outra viagem. Em meio ao Arte déco eu escolhi me refugiar nos traços modernistas do edifício Parthenon Center, que abriga o Centro Cultural Octo Marques. E é aí que está aberta a exposição Tubo de Ensaio 2, onde nove jovens artistas, estudantes da Escola de Artes Visuais – EAV, nos presenteia com sua arte.
São nove artistas, vários estilos e técnicas e uma infinidade de sentimentos e sensações.
Entrei despretensioso e com meu olhar comum. Mas a energia presente, que escapa dos trabalhos e espalha pra’lém das paredes da galeria, não exige olhar especializado. Eles conseguem conversa com todos que ousarem passar pela porta.
A força representada, por cada artista me tirou o ar, me inquietou, me fez refletir, me chocou, aguçou minha imaginação. Tudo de forma intensa e atingindo vários dos meus sentidos.
Força essa presente em todos os trabalhos expostos. Uma verdade, no entanto, grita mais alto. A energia feminina sobressai ali.
Como já disse, não sou crítico de arte, não sou milionário colecionador, nem estudante adolescente. Sou só uma pessoa que que busca em toda forma de arte, uma fuga para a loucura que a realidade nos obriga a engolir.
Mesmo assim, com meus sentidos ordinários, foi impossível sair ileso daquela visita.
Temos ironias enganosamente leves, de um conjunto de pipas, com letras que formam a palavra “AFUNDAR”. E uma coleção adulterada se camisas de clubes de futebol, denunciando nosso grande apreço por essa prática. Tão grande que beira à compulsão. Seria simples assim, se o artista Matheus Martins, ao adulterar as camisas, não nos apresentasse algumas possibilidades e intenções nada inocentes, que há por trás do nosso esporte favorito. Matheus traz ainda um trabalho especialmente impactante, ao colocar uma nota de R$ 200,00 entre duas cruzes de madeira, posicionadas em sentido oposto. Intitulado “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, esse trabalho, assim como no filme de Glauber Rocha, faz uma crítica que alcança igrejas, costumes e tradições. As cruzes em posições opostas insinuam que uma está de ponta cabeça, o que é um sinal antagônico para as novas gerações, que aprendeu que se trata de um símbolo demoníaco, mas que, na verdade, remete muito mais ao comportamento humilde de Pedro, o apóstolo que se julgou indigno de morrer ne mesma posição dO Mestre, e pediu para ser crucificado de ponta cabeça. A crítica do trabalho não se limita aos dogmas canônicos, nem às práticas de várias denominações religiosas. Mas chega em todos nós, com nossa fé condicionada à benefícios financeiros.
O grande couro de boi, marcado à ferro e fogo e animais com palavras impactantes, uma grande crítica às monoculturas e suas grandes consequências negativas e, também, muito simbólico e representativo do comportamento social de nossos dias. As marcas expostas, lembram que elas continuam prontas, e aquecidas, para nos marcar o tempo todo. Assim, Adriano faz sua grande crítica socioambiental.
Mas termina aí, a leveza da exposição.
Não sei a separação quis deixar exatamente assim. Os trabalhos leves de um lado, e todos os socos do outro lado da parede. Aliás, “atrás dessa parede tem um jardim”, denuncia a voz suave e compassada, que tenta me convencer dessa e de outras verdades. E eu aceitei sem questionar. Prefiro mesmo acreditar que do outro lado há um jardim, e todas as outras coisas que ela narra.
Essa voz ficou tentando roubar minha atenção enquanto eu vislumbrava as montagens fotográficas “Vulnus”, “A Outra” e “Linguaruda”. Só essas fotos já teriam valido a visita. Mas aí estava apenas começando a sequência de soco em meu estômago metafórico. Em seguida, a série “Compulsão”, da mesma artista, começa a nos falar de nossos hábitos. E as fraquezas geradas por hábitos a que somos submetidos. Um detalhe não passou despercebido aos meus olhos amadores. A tatuagem da modelo que quase se confunde com os elementos inseridos no ensaio, compondo lindamente e, quem sabe, denunciando uma compulsão real da artista.
Caminho pela parede e nova arte feminina, feminista. As telas gritam aos meus sentidos a violência contra as mulheres. Mas a artista Bianca Rezende não mostra apenas a mulher como vítima. Ela vai mais fundo, e nos apresenta possíveis consequências. E é assustador. Desalentador, perceber o que criamos, ao violentar nossas mulheres. E, claro, as obras mostram que as transformações não se ficam apenas em quem sofre essa nossa violência. Mas atinge toda sociedade. Aqui meu estômago deu uma revirada forte. Minha culpa gritou. E eu perdi completamente meu equilíbrio. Sorte que estava sozinho (o que é um desperdício do tempo de tão rica exposição).
Ao passar por esses trabalhos, me chega a ambígua Âmbar, tentando, mais uma vez, nos mostrar, ou mostrar a si mesma, como nossos hábitos de consumo são danosos e prejudiciais tanto para o planeta, para a sociedade quanto para nós mesmo, individualmente. A riqueza contida na falsa simplicidade do trabalho da Âmbar é impressionante. Usando colagem, pintura sobre papel e outras técnicas, ela insiste em tentar abrir uma brecha em na própria consciência, e na nossa. Como que prevendo que, assim como ela, eu resistiria a aceitar as duras verdades, ela lança mão de suas Caixas, a “de Morte” e a “de Kura”, com conteúdo que quase denunciam sucessivas tentativas de interromper a própria vida e, ao mesmo tempo, sucessivos esforços para continuar por aqui. Ela tentou. Me impactou. Mas ainda tenho dúvida se ela teve sucesso ao tentar mudar comportamentos. Meus e dela…
Em seguida sou forçado a tentar me equilibrar em solto agulha, em diversas situações. Novamente vejo a denúncia do abusivo comportamento de condicionar às mulheres a se portarem de maneira desconfortável, desumana até, para satisfazer fetiches sociais, por vezes tão estúpidos que ninguém ousa, sequer, discutir. E a artista faz uma abordagem completa e sequencial muito interessante que, ao final, me permitiu descalçar quando já não me equilibrava mais.
Finalmente cheguei à origem da voz que tentava me roubar a atenção. E me atentando a ela puder conhecer, ou imaginar o que existe do outro lado da parede. Torço para que a realidade seja mais bonita que minha imaginação. De qualquer forma pude conhecer um pouco mais do prédio modernista em que estava, e da praça bem ao fundo, que nunca tinha reparado. Além do som, a artista usa imagem em movimento para contar sua história, que no caso é a história do prédio e da praça vizinha. E ficou tão bem construído que a sequência do “Exercício de corte” quase me permitiu atravessar a parede e chegar ao jardim.
Saio da exposição da Maru e a Tatiana Susano me joga na cara todas as questões socioambientais em uma sequencia de peças, dois trabalhos, que se confundem. E podemos ver madeira queimada, mas também podem ser pessoas. Assim como a bala que repousa encapsulada sobre um pedaço de tronco, pode estar a espreita da próxima vítima, por certo quem se atrever a defender as árvores que agonizam sob as chamas.
Como no gado marcado e nas mulheres violentadas, o trabalho da Tatiana é impressionante adequado ao momento. Antes de conseguir me arredar dali, fiz uma prece para que seja adequada ao agora, mas que não seja atemporal, e não denuncie realidade futura.
Terminei minha visita nos trabalhos de Walter Pimentel. Abordando outro tema, ele não amenizou meus últimos instantes. Pintura forte e carregada de energia. Cores vibrantes em tons escuros, obscuros. Walter retrata famílias, ou o que deveria ser uma. Coma a cena mais completa propositalmente inacabada, com tintas escorrendo, o conjunto me contou da falta que se sente de quem partiu, ou nem chegou a vir. Saudade. A forte presença da ausência. Ausência, em alguns momentos quase visíveis. E a solidão pesada…
Me calou.
E o peso de tudo que vi me segurou ali, quieto por alguns minutos além.
E sim, essa visita valeu minha segunda-feira. Na verdade, quase compensou todos os dias de isolamento, nessa maldita pandemia.
Alguém poderá dizer que, “mas é só uma exposição de arte”. E essa pessoa estará certa. Tubo de ensaio 2 é só uma exposição de arte. Mas é uma legitima exposição de arte. Com todos os elementos que se pode esperar de uma exposição no ano da Graça de 2021.
Nove jovens artistas jogando em nossas caras suas formas de enxergar nossas necessidades de enfrentar os conflitos de agora. Tentando nos mostrar saída.
A exposição ficará aberta até 14 de janeiro de 2022, com visitação entre às 09:00 às 17:00. Se eu fosse você, roubaria um tempo de sua tão importante rotina, e iria lá. Tenho certeza que sairá melhor. Se não, ao menos muito mais incomodado com tanta realidade que somos forçados e experimentar diariamente.
Finalizo essa minha divagação com a afirmação com tom profético de Âmbar, rabiscado em papel amarelo, “O futuro foi agora”. Rezo para que ela, novamente, esteja enganada.
Goiânia – GO
Nazareno – Naza
Escritor, apreciador das artes e do centro de Goiânia. E dos tempos roubados da massacrante rotina.
24/11/2021
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